A história

A História

A história começa com um flerte no meio da cerca, no qual um casal de lavradores descobre o amor. Ela do lado de cá, ele do lado de lá da cerca. Apesar de perceberem que há “algo no amor deles que não deveria acontecer”, um dia, o casal de lavradores foge, rompe a cerca para viverem juntos num casebre sertão adentro.

Pressentem que algo de perigoso paira sobre eles. Depois de vinte e dois anos de casados, a esposa compreende o porquê, ao perder subitamente o marido. Durante o velório, as velhinhas carpideiras, ao prepararem o morto, descobrem que Etevaldo é uma mulher. Após esta reviravolta, sucedem-se levantes de repulsa e homofobia. Machucada pela perda, sem entender a dimensão de seus atos, ela acaba sendo vítima do horror e da intolerância do povo.

Essa poderia ser mais uma história de amor, não obstante a intolerância e a crueldade despertadas pela descoberta reveladora. Agreste Malvarosa é um vigoroso manifesto poético. Uma fábula sobre a ignorância, o preconceito e o amor incondicional.


A construção do texto

A Construção do Texto

O autor Newton Moreno construiu o texto da peça Agreste Malvarosa partindo de sua pesquisa sobre orientação sexual com mulheres camponesas/ lavradoras no interior de Pernambuco. Mulheres que desconheciam seu corpo, sua sexualidade e o silogismo tortuoso de sua feminilidade. O texto nasce numa encruzilhada que confronta o imaginário nordestino e o discurso limítrofe das sexualidades contemporâneas. O autor aterrorizou-se com a ignorância que essas mulheres tinham de si. A peça começou ali e veio se organizando em dois eixos centrais: os desdobramentos da ignorância disseminada nessas comunidades; e o recurso do contador de histórias do Nordeste.

A Pesquisa


A Mulher


Agreste Malvarosa recorre a um dos elementos do imaginário sertanejo – a figura da mulher que se finge/ traveste de homem. Aborda a reflexão sobre até onde essas mulheres tinham consciência de seus corpos, de suas cascas e de sua transgressão. Até onde pode chegar o grau de desinformação do povo no interior deste país. Agreste Malvarosa justapõe uma pesquisa de temáticas contemporâneas à supressão do outro (homofobia) e a redefinição de papéis e identidades sexuais ao abandono do povo nordestino e ao discurso contemporâneo da frágil linha limítrofe da sexualidade.

Millene Ramalho

Millene Ramalho
Millene Ramalho e Beto Lemos

Rosana Barros

Rosana Barros
Rosana Barros

A direção


A Direção

A direção de Stephane Brodt e Ana Teixeira para esse texto propõe o cruzamento entre o fenômeno cênico teatral da cultura popular nordestina, berço da tradição oral de contadores de estórias, aliados aos elementos extraídos de alguns pensadores do teatro no século XX, tais como Artaud, Etienne Drecroux, Meyerhold, Jacques Copeau e diretores contemporâneos como Peter Brook e Ariane Mnouchkine. Essa interseção propõe um olhar universal sobre o Nordeste, desterritorializando-o.

As atrizes recebem o público, criam a ambiência do espetáculo, introduzem o sertão assim como fazem os repentistas. Essa aproximação entre público e platéia tem a intenção de recriar a atmosfera da “contação” de história, reavivando memórias arcaicas, quando grupos se reuniam ao redor da fogueira ou embaixo de uma árvore para ouvir “causos”.

Teatro do Jockey

Teatro do Jockey
Agreste lota o teatro do Jockey (RJ). Público ri e chora ao mesmo tempo.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

AGRESTE ILUMINADO
Weydson B. Leal*

A correta abordagem de um texto teatral é um desafio para poucos. Conduzir a palavra à ação – onde uma e outra se ampliam e se completam – requer talento de criador. Sem este, qualquer grande texto pode ser destruído. Não faltam desastres na história da dramaturgia. Felizmente, de tempos em tempos, algo de realmente belo surge nos palcos do Brasil. O espetáculo Agreste Malvarosa, de Newton Moreno, sob a direção de Ana Teixeira e Stephane Brodt, com as atrizes Millene Ramalho e Rita Elmôr, é um exemplo positivo.
Pode-se definir o texto de Moreno como um raro poema dramático de força e beleza. Dois pilares sustentam sua delicada construção, tornando-o, também por isso, difícil e perigoso para o encenador. Tudo se resume à linguagem e ao lugar da ação, topos e locus de uma história quase inverossímil. Concluir, a partir do título, que o fato se passa no Agreste brasileiro não é saber muito. Há mais ali. Este Agreste, assim como o Sertão, não é um lugar, é um universo, guardador de costumes intangíveis e atemporais onde a linguagem é um idioma estranho para quem não é de lá. Na História da Literatura Brasileira, o melhor exemplo dessa estranheza é o romance “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa, que em certo momento inspira o enredo de Newton Moreno. Em Agreste Malvarosa, o autor revisita a poesia rosiana ou algo da pureza de seus personagens, assim como  aquela realidade em suspensão quando o sentimento amoroso se aproxima do perigoso e ambíguo universo do sexo.
Como tragédia ambientada em tempo e lugar distantes do público das metrópoles, o texto de Moreno pede uma direção que não permita, sob o fácil pretexto da novidade, inventar sobre o que, em sua realidade, já é quase surreal. Et pour cause, há no trabalho dos diretores Ana Teixeira e Stephane Brodt o reconhecimento dessa distância, da importância do silêncio como elemento de composição, pois ali o silêncio também fala, e muito. É este silêncio, depositado entre frases e palavras, numa cadência sem pressa e plena de expressão, que transforma o espetáculo em teatro puro. As atrizes Millene Ramalho e Rita Elmôr, de forma precisa, dialogam num plano muito superior à dicção coloquial, deixando claro para o espectador que ele está diante de um mundo particular, mas reconhecível e renovado pela poesia. Neste Agreste, música, luz, figurino e cenografia se conjugam de forma a confirmar e dar força à ação. As personagens, quando imersas no silêncio, poderiam ser camponesas de diversos lugares do planeta, numa clara expressão de que aquela história, ou aquela humanidade, é nossa e é outra, exótica e comum.
Agreste Malvarosa é uma história de amor. Um amor que se inicia num lirismo poético e evolui para uma tragédia de proporções gregas. Não obstante a saga trágica, esta não é a história de uma guerra, de um assassinato ou de uma traição, mas de um engano, tão real e tão comum como tantos enganos em tantas histórias de amor. Um sentimento que, por desconhecimento do corpo, aqui sobrevive como algo não nomeado e transcende à própria morte. Este espetáculo, por sua originalidade, qualidade do texto, direção e primoroso trabalho das duas atrizes, deveria ser levado a todos os palcos do Brasil. Principalmente nas pequenas e grandes cidades do nordeste, onde há muito tempo a realidade televisiva e tecnológica segregou das novas gerações uma cultura, hoje, agonizante. Agreste Malvarosa também conta a história dessa cultura. Mas mais do que isso, reafirma a existência do verdadeiro teatro.




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WBL, poeta, critico e dramaturgo, é co-autor de CAETANA e outros textos encenados na Espanha e em Portugal.  É membro da ABCA – Associação Brasileira de Críticos de Arte.




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